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Se ser português, como teoriza Távora, não passa por negar ser-se contemporâneo;
ser contemporâneo também não deveria passar por negar ser-se português
Patrícia Miguel, O corporema da Casa Portuguesa                       

1.

Começando pelo final, para evitar qualquer suspense e para se entender a convergência dos raciocínios em função do que se quer provar, certamente de duvidosa pertinência, para muitos, retomaremos, em jeito de síntese, o que já escrevemos noutras ocasiões1.
     Deverá ser um texto elaborado a partir do interior da nossa cultura, pondo a nu dificuldades, contradições, complexidades, num processo que jogou, ao longo do tempo, com a premente necessidade de encontrar respostas urgentes e circunstanciais, sem perder a sua estrutura essencial, isto é, como diz T. S. Eliot, “sem deixar alterar o seu passado pelo presente”. E, depois, como refere Carlo Ginzburg, contrapor a um estatuto científico forte, com resultados de escasso relevo, um estatuto científico débil que aspira resultados relevantes.
     Renunciaremos, de momento, à tentativa, essa sim, seguramente pertinente, de responder a algumas perguntas, tais como:
     O que será hoje e, sobretudo, no futuro, ser português? Será que vamos querer continuar, ou será que poderemos, neste momento difuso de integração na Europa, e sem cairmos em nacionalismos radicais, chamados por Eduardo Lourenço de benfiquismos patrióticos, ou em ridículas resistências antieuropeistas, será que queremos ou poderemos manter colectivamente alguma convicção identitária que nos garanta, objectiva e subjectivamente, a persistência de um Portugal/Nação?
     Será que teremos de reconstruir uma nova actualização da identidade nacional de base puramente ideológica, nós que somos por natureza e por defesa, inventores natos de identidades, ou será que a temos ou estamos a caminho de ter, com algum fundamento sociológico, económico ou cultural?
     Sabemos, no entanto, que a perda da identidade, mesmo daquela que, eventualmente, inventemos para o nosso tempo, significa a perda do nosso País, a sua diluição na periferia de alguma ou algumas regiões europeias.
     Tentaremos provar que são, não só a Língua, mas também a Arquitectura e as Cidades de língua portuguesa, que nos permitem algum sentimento de pertença a uma comunidade construída com tanta injustiça e sofrimento, como esforço e imaginação. É, pois, através das nossas Língua e Arquitectura, das nossas Cidades, que permaneceremos ou não portugueses. Note-se como o pronome possessivo, nosso, tem, aqui, um valor substantivo.
     Pouco tempo nos resta antes da desistência total, mergulhados no fatalismo da inevitável perda. Perda que, para alguns outros, novos-ricos do futuro, será, positivamente, um factor de progresso que nos deveria comprometer.
     Ao contrário destes sinto-me como um homem do século xix, porque é ao passado – mas por causa do presente que, com tanta mentira caminha ao nosso lado – que, como Garrett, dirijo a interrogação: “Que ser é o meu se a pátria a que pertenço não está segura de possuir o seu?” Como Sophia, que tem “a memória longínqua de uma pátria eterna mas perdida e não sabemos se é passado ou futuro onde a perdemos”.
     A consciência da nossa fragilidade histórica, hoje, como no século xix, projecta os seus fantasmas simultaneamente para o passado e para o futuro. O drama de Garrett, que quis assumir, é o de Portugal como povo que só já tem ser imaginário ou mesmo fantasmático – “realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na história, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos”, como nos disse Eduardo Lourenço.

2.

Procuraremos na história e na análise do presente, alguns elementos para fundamentação do nosso pensamento.
     São reconhecidos por todos alguns momentos fortes da nossa história, em que a construção de uma identidade nacional foi, no caso de Portugal, um elemento fortemente decisivo para garantir ou justificar a viabilidade da nação.
     O milagre de Ourique, a nossa missão de reconstruir o Império cristão na continuidade da Reconquista, a epopeia sintetizada nos Lusíadas, tão única e universal que comoveu o Olimpo, o regresso da corte à aldeia do nacionalismo restauracionista, a independência desejada contra franceses e ingleses na assunção das razões da decadência dos povos peninsulares, sustentada colectivamente pela reacção ao Ultimato, numa espécie de proposta de refundação, dos nossos romantismo, liberalismo e republicanismo, o passo atrás do ruralismo clerical do nosso fascismo, o 25 de Abril e o seu projecto de invenção de um modelo português de socialismo, são momentos, entre outros submomentos, do nosso espírito ficcionista, diria talvez, para amaciar a ironia, da nossa veia poética.
     A verdade mesmo, para não entrar em considerações subjectivas do tipo do trabalho de Jorge Dias, seja Os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950) ou, mesmo quando dá lugar “a maiores dúvidas e incertezas” no Carácter nacional português na presente conjuntura (1968), é que todos estes episódios corresponderam a indispensáveis respostas políticas e ideológicas da classe dominante contra a nossa tendência estrutural para a dissolução da Nação, buscando-lhe novos sentidos, nas várias circunstâncias históricas.
     Teixeira de Pascoais propõe, até, na sua Arte de ser português (2ª ed., 1920) “instruir, educar e criar portugueses”, através de uma nova disciplina que deveria “fechar e coroar esplendorosamente o Curso Geral dos Liceus”. Já que se não é, aprende-se a ser...
     Melhor nos pareceu a Agustina Bessa-Luís quando escreve na Imaginação moral do português no mundo (1985):
     O primeiro movimento de um grupo que merece o nome de histórico é o de organizar um Estado e unificar uma língua e também, nesse sentido, dar predominância a uma religião. Essa primeira etapa, no que se refere a Portugal, foi consolidada por D. João I e a sua geração de príncipes. A partir daí, a espiral, como resultado histórico, começa a tender para a dissolução.

3.

O problema da nossa individualidade geográfica, como lembra José Mattoso, está, hoje, esgotado. O debate que suscitou teve como resultado mais positivo a determinação das condições naturais, não do conjunto do território português, mas da sua divisão regional, ou seja, das diferenças que o repartem. Orlando Ribeiro mostrou, desde 1945, quais as grandes áreas naturais em que se divide Portugal, mas também como elas se prolongam pelas regiões espanholas que as limitam. A influência das condições geográficas sobre a identidade nacional exprime-se, ainda, pelas modalidades de ocupação e de organização do solo, que também a marcaram diferenciadamente.
     O fenómeno de urbanização do espaço não tem deixado de se acentuar ao longo dos séculos e exerce uma influência crescente sobre a configuraçãodas regiões. Poderia parecer que a tendencial uniformização dos padrões culturais, imposta pelos meios de comunicação, teria potencialidades capazes de obviar as diferenças culturais de base regional. Não é o que parece estar a acontecer em alguns outros países onde surgem características próprias de certas cidades que lhes conferem um papel correspondente aos antigos padrões de base rural.
     Pode perguntar-se, no caso português, se será verdade que se tornam mais ténues as ligações com o factor da territorialidade, diminuindo, assim, os sinais identificadores que distinguiram as comunidades a nível regional e local quando estudos recentes sobre a urbanização do nosso território parecem relevar modos bem diferentes de ocupação que claramente distinguem uma área de urbanismo difuso, que se estende pela Galiza, de outras áreas do nosso território, a sul, como, por exemplo, a área metropolitana de Lisboa ou o Alentejo.
     Portugal continua a ser um país nitidamente desigual, não por razões programáticas ou concorrenciais, como no resto da Europa, mas por razões de atavismo estrutural.
     Basta lembrar, ainda, as piores condições de vida e menores oportunidades dos habitantes do interior em relação aos do litoral, problema que não reflecte, apenas, a desigual capacidade de recursos naturais, mas também o aprofundamento de uma situação que começa a ser clara desde a fixação das nossas fronteiras medievais que cortaram as mais importantes vias de comunicação, litoral/interior, desenhadas pela ocupação e colonização romanas.
     Começamos a perceber como o factor político terá sido e, provavelmente, continua a ser, o mais determinante na formação de uma identidade nacional.
     José Mattoso, mais uma vez, discorre sobre este tema a partir da própria formação do nome de Portugal. O nome do País deriva de um centro administrativo e não de um povo. Podemos verificar a importância deste facto comparando-o com o nome de outros países que derivam de substantivos étnicos, como aconteceu na França – terra dos francos –, na Alemanha – terra dos alamanos – ou na Inglaterra – terra dos anglos.
     É verdade que foi do Porto “que houve nome Portugal”.
     De facto, Portugal não teve origem numa formação étnica, mas numa realidade político-administrativa. E, ao contrário da doutrina aceite no período nacionalista do Estado Novo (vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Mendes Correia), Portugal começou por ser uma formação do tipo estatal e só muito lentamente acabou por se tornar uma Nação. Para isso teve de percorrer muitas fases de construção identitária, puramente ideológica, algumas das quais já referenciámos.
     O Estado português foi agregando a si uma série de áreas territoriais com poucos vínculos entre si, com acentuadas diferenças culturais e com condições de vida muito distintas. A sua unidade esteve na continuidade de um poder político que dominou o conjunto de maneira firme e fortemente centralizada, com apoio do Direito Romano que arreigou o princípio de que todos os habitantes do reino eram vassalos naturais do rei. A ideia, que se baseava na noção de nascimento, passou a relacionar-se com a noção de natureza, com as consequentes implicações ideológicas, pelo facto de, assim, se tornar efeito de uma realidade considerada essencial e, por isso, intocável e sagrada.
     O Estado não emerge, pois, de nenhuma formação étnica. Pelo contrário, continuando com Mattoso, ignora todas as etnias que o precederam e sobrepõe-se a elas como uma entidade política sem qualquer relação privilegiada com nenhuma delas, absorvendo uma grande diversidade cultural, paisagística e histórica: o Estado e também o próprio fenómeno da nacionalidade.
     De facto, não existe nenhuma realidade antropológica ou do âmbito da cultura popular com uma expressão propriamente nacional (isto é, que se verifique em todo o território português) senão a identidade da Língua, mesmo assim ponderada pelos estudos de dialectologia de Lindley Cintra. Todos os outros são de âmbito regional, desde as técnicas agrícolas, à estrutura do parentesco, da prática religiosa às estruturas político-administrativas. Também a arquitectura popular, como os arquitectos do Inquérito demonstraram, nos finais de 1950.
     Diz-nos Agustina, no texto antes referido:
     Verificamos que a sua [do português] noção de raça é bastante vaga; não se inclui positivamente num grupo determinado, desmente tudo o que pode defini-lo como pessoa inimitável e sobretudo feita duma pele seca e coriácea. Em todos os lugares da terra ele aparece com a tendência para se manter abaixo do excepcional, para alterar o momento épico tornando-o vulgar referência, sem conclusão. Quando aparece o momento épico, começa a degradação histórica.
     Poderíamos avançar, se houvesse estudos de psicologia social que lhe dessem fundamento, para algumas estruturas de longa duração que poderiam relacionar-se com determinadas tendências mentais, aparentemente muito comuns, como seja a saudade, associada ao lirismo e a reduzida capacidade de planeamento aliada à tendência para a improvisação. Boaventura Sousa Santos chama-nos a atenção para o facto de serem tendências correntes e que podem modificar-se se as condições estruturais de ordem económica e social se alterarem.

4.

Entretanto, aparentemente contrariando o que foi dito, alguns atrevidos intérpretes da realidade nacional têm vindo a defender a existência de uma arquitectura portuguesa e sobretudo de um urbanismo português. E temos afirmado o que toda a gente sabe, sem necessidade de comprovação científica: existem valores distintivos na nossa Arquitectura e nas nossas Cidades, seja qual for o lugar que lhes tenha dado terra. Valores que contêm explicitamente uma vontade de unidade que, no nosso caso, tem de ser entendida como polémica expressão de uma complexa multiplicidade.
     Como poderemos ler, então, a diversidade demonstrada pelo Inquérito, usada como argumento central na luta contra a imposição do modelo formal fixado pelo salazarismo?
     Os etnólogos, da geração de Jorge Dias, disseram-nos, pelo que tinham lido dos colegas estrangeiros, que a arquitectura popular é a expressão das actividades espaciais de um grupo que ocupa um território subordinado, política e economicamente, a um complexo estado dominante, ou limitado por um sistema de desigual distribuição dos meios de produção, num território mais amplo do que o seu próprio.
     A arquitectura primitiva pode ser definida, pelo contrário, como a expressão das actividades espaciais de uma sociedade pré-estatal, ocupando um território específico e preservando um elevado grau de independência económica e política em relação às outras sociedades com que está em contacto.
     No entanto, a arquitectura popular pode, por tradição cultural de certos extractos da população, manter elementos residuais de estádios anteriores, em sincretismo ou até integrados em novas sínteses com os elementos que são reflexo das formas dominantes. E não só por tradição cultural, mas também e sobretudo por convergência, uma vez que a arquitectura popular e a primitiva têm em comum o ajuste às condições gerais do meio e a adaptação dos recursos imediatamente disponíveis: o que tanto interessou, no plano conceptual, os nossos arquitectos!
     No caso português, as profundas desigualdades regionais, já referidas, as condições precárias do nosso desenvolvimento que incluem uma reduzida rede de comunicações, tornam difícil a distinção dos conceitos. A Arquitectura Regional, objecto do Inquérito promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos (1955–1960), tratou, assim, sobretudo, de expressões alicerçadas numa tradição pré-estatal ou, como dizíamos antigamente, primitiva.
     Saliente-se, no entanto, que as igrejas paroquiais ou conventuais, de determinada época histórica, implantadas em regiões distintas, com arquitecturas distintas, têm, na sua essência estrutural, uma unidade estilística a que poderemos chamar nacional, por serem reflexo do poder político central associado ao poder da Igreja. Esta é a arquitectura portuguesa ou italiana ou espanhola, se de outros países se tratasse, com idênticas dificuldades de estruturação como estados/nação.
     Mas, se morreu aquela arquitectura popular, pré-moderna, emergiu uma outra, dependente de outros factores, diríamos, passe a expressão, menos naturais.
     Como no estádio anterior, podem existir convergências conceptuais, com o que chamamos arquitectura erudita e que saudamos como positivas, estando tentados a considerar que haverá mais divergências que nos podem, até, ofender, mas que decorrem de algumas conquistas civilizacionais, como o direito à mobilidade ou, mesmo, ao turismo e à segunda residência, que vão a par com o direito à educação e aos elementares cuidados de saúde.

5.

Passando ainda além da Taprobana, desbravámos terreno e fomos encontrando pacificamente o Portugal não realizado, logo na arquitectura açoriana, depois na arquitectura e nas cidades coloniais que apareceram como um reflexo radical da especificidade nacional, numa selecção criteriosa dos seus elementos mais característicos.
     Na tentativa de desvendar a especificidade desta enigmática família, tão diferente e tão igual, da Arquitectura e da Cidade portuguesas, paradoxalmente tão sólidas representações de um país em permanente dissolução, encontramo-nos com um facto histórico elucidativo, que Jorge Correia cita na sua dissertação de doutoramento2.
     No “Regimento a Pêro Vaaz que vay a Alcacer fazer as obras d’Alcacer”, de 22 de Junho de 1502 escreve-se:
     E no cabo della se façam dous cubellos redondos que subam sobre ha altura do muro da dita coyraça quatro palmos os quaes cubellos seram vaaos e teera cada hum de vaao em larguo quimze palmos... ao pee dos ditos cubellos mandamos fazer senhos talhamares de pedraria dereitos cotra ho mar d’altura de dez palmos pouco mais ou menos...
     O documento aponta, ainda, a continuação do corregimento dos muros da vila “caso sobrasse algum dinheiro da empreitada da couraça”.
     Sim, é verdade que este pobre País se vai fazendo, caso “sobre algum dinheiro e de acordo com a possibilidade de cumprir “mais ou menos os seus projectos. E isto fundamenta hábitos de senso e adaptabilidade, diria, estrutura uma cultura que não abandona nunca a sua permanente presunção retórica, diria chapliniana.
     Atente-se a exclamação de D. Sebastião, nas vésperas do desastre de Alcácer Quibir, à vista de Tanger, onde padeceu o Infante Santo:
     “Vós deveis pensar que tenho muito medo dos mouros, pois fizestes este castelo tão forte!”
     Assim, da nossa arquitectura, aprendida no acto de construir, souberam os nossos mestres pedreiros, de pais para filhos, copiando, inovando, respeitosamente.
     De facto, os critérios da arquitectura portuguesa não são tanto os da coerência, mas sobretudo os da eficiência e, por isso, muito ligados ao imediatismo da técnica produtiva. Conferindo um crédito quase total ao senso comum, faz dele critério latente de verdade, julgado patente na leitura da tradição.
     A arquitectura portuguesa é, sobretudo, construção, espaço de suporte para a acção, cujo significado não contamina o desenho. Apura-se simplificando-se, comunica, antes de mais pela decoração que não interfere nos valores estruturais e, mesmo quando aspira a um espaço mais emotivo e dinâmico, como no barroco, contém-se dentro de uma volumetria que não ousa romper com a simplicidade de uma geometria de volumes puros.
     Por necessidade de afirmação, de domínio ou marca territorial, trabalha a escala e é sobretudo na dimensão e na implantação que assume, como objecto na paisagem construída ou natural, os seus mais expressivos valores formais. E, assim, se transforma de arquitectura em elemento de composição urbana, salientando, na racionalidade e uniformidade da arquitectura civil, a natureza do edifício singular.
     Da experiência de construir, conhecidos os modelos, nasce o saber, sem grande teoria de suporte que se transmite empiricamente. Afastado o modelo, procura-se, sobretudo, a eficácia, no caso a caso das circunstâncias. Dessa capacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de natureza formal ou estilística, nasce a sua variedade, a sua espontaneidade e o seu eclectismo que nunca lhe retiram um genérico carácter de família que nos permite a sua permanente identificação.
     Houve, evidentemente, um claro desejo de fixação no território ultramarino de formas culturais decididamente presas ao mais sólido e perene daquela experiência prática, levando as suas implicações ao extremo das possibilidades expressivas. São os modelos mais depurados, elaborados em Portugal durante o século xvi, que são transpostos literalmente, não só como consequência da inexistência de arquitectos residentes com capacidade inovadora ou integradora de novas formas eruditas da arquitectura internacional, mas, sobretudo, por razões de ordem simbólica de representação do poder.
     O poder, e sobretudo o colonial, não pode dar de si próprio uma imagem frágil ou hesitante, o seu exercício passa pela construção de uma síntese que o represente de forma unitária.
     Por isso, temos defendido a hipótese de que a Arquitectura Portuguesa, contraditória e ecléctica, nos sobressaltos de uma história cheia de vicissitudes e num país dividido por valores culturais dificilmente unificáveis, encontrou nos territórios coloniais uma imagem clara que não só sintetiza, como aprofunda, as suas tendências estruturais, constitutivas de uma hipotética especificidade. Se na arquitectura da Corte ou da Igreja é legível, mesmo na metrópole, a construção de uma tradição erudita nacional, na arquitectura doméstica, que constrói as cidades, as diferenças são assinaláveis e a síntese não chega a tomar lugar. Para a conhecermos temos de viajar pelo mundo da língua portuguesa.
     É, de facto, o Estado fortemente centralizado e os seus efeitos ainda mais poderosos no mundo colonial, que garante, como seu reflexo (como é sempre a arquitectura e o urbanismo), uma especificidade portuguesa.
     Além de se poderem encontrar algumas invariantes na nossa arquitectura mais antiga, decorrentes, sobretudo, de um processo de simplificação/domesticação de modelos importados, adaptado às condições próprias da produção arquitectónica nacional (marcada pelos parcos recursos de um país periférico), é muito interessante verificar como a sedimentação da referida especificidade se deu, essencialmente, fora do chamado Portugal metropolitano, estando na origem de mestiçagens que originaram novas e prósperas invenções identitárias.
     Na sequência de todas estas reflexões, temos aproximado a Língua, que é a nossa Pátria, da nossa Arquitectura e das nossas Cidades.
     Parece pertinente referir como a questão do património arquitectónico só foi verdadeiramente colocada em Portugal com o advento do romantismo, antes de mais pela tomada de consciência da necessidade de reencontrar uma identidade nacional que se achou legível nos chamados Monumentos Pátrios, a que se aliava o estado de ruína de muitos edifícios com valor histórico e arquitectónico, por desleixo ou transformações gravosas, na sequência da venda em hasta pública dos bens da Igreja.
     A incapacidade ou fragilidade do poder político levaram figuras como Garrett ou Herculano a tomarem posições duramente críticas, mas também, propositivas. Assim se foram elegendo, classificando e restaurando os nossos monumentos considerados mais representativos e se foi desenvolvendo o debate sobre qual o estilo mais verdadeiramente português para figurino dos nossos futuros edifícios. Os arquitectos ou cenógrafos tiveram à sua disposição, conforme as circunstâncias, várias linguagens que do manuelino, ao românico, passando pelo mudéjar, acabaram por desembocar no português, de inspiração civil, rural ou vernacular, por vezes cruzada com o joanino.
     Assim, cada vez “mais portugueses”, entraram os arquitectos pela República, nacionalista e pequeno-burguesa e assim prosseguiram, com outros objectivos ideológicos, apesar das suas origens e algumas experiências modernistas, durante o Estado Novo.
     A ausência, ou talvez o medo, da adiada Lei Orgânica do Património, trazem, agora, o espectro de novas hastas públicas em época de crise financeira.
     Todos dizemos, hoje, tendo, embora, visões diferentes de futuro: a Paisagem e as Cidades, a Arquitectura, são valores identitários. Mesmo que construída artificialmente, mesmo que não sendo nossa essência, sabemos que essa identidade foi factor de coesão e até de sobrevivência. Daí que a sua defesa, a sua preservação ou a sua recuperação transcendam o plano puramente cultural e se devam colocar, em primeiro lugar, no plano político e, só depois, mas também, no económico ou até, porque não, no terreno do estético.
     Evidentemente, se as instituições políticas, representando, como devem, os anseios democraticamente expressos pelo nosso povo, decidirem adoptar o inglês como língua oficial, they must do it, proibindo o português, tal como o Marquês de Pombal fez com o tupi, para fortalecer o Império.

6.
Carlos Machado, na sua dissertação de doutoramento3, refere que na segunda metade do século xx em Portugal “alguns arquitectos apontaram, tanto em textos como em projectos, de um modo particularmente rico de conteúdos e hipóteses, para uma continuidade problemática com a tradição”. Problemática, porque não pode ignorar as mudanças, os interstícios das descontinuidades históricas, sobre os quais se constrói, hoje, uma nova história que, não estando congelada no passado, é concebida como um processo constituído por passado, presente e projecto de futuro, construindo a sua narrativa, como uma deriva de nexos vários.
     Acrescentando a leitura do excelente ensaio4, não publicado, de Patrícia Miguel, que se propõe repensar “O Problema da Casa Portuguesa” de Fernando Távora (1947), em confronto com uma recente visão crítica que parece reivindicar que as identidades nacionais deveriam ser substituídas por uma supra identidade urbana europeia, abrimos novas perspectivas sobre a pertinência de avançar alguma investigação, dentro deste campo das identidades, para a actualidade da nossa produção arquitectónica.
     O interessante é que esta aparente ruptura que a novíssima crítica quer introduzir, vem substituir a ideia da multiplicidade complexa, propostapor Fernando Távora, ou a de um desejo de unidade entendida como polémica expressão da complexidade, nas nossas próprias palavras, que parecem ultrapassar, em contemporaneidade, as dicotomias: unidade/diversidade, velhos/novos, geração “y”/geração “x”, escassez/deslocação, moderno/vernáculo, Portugal/estrangeiro, típicas de uma espécie de tentação fatal pelo maniqueísmo judaico-cristão.
     Este reinventado internacionalismo, obedecendo a novos e diferentes códigos e produzindo, como escreveu Varela Gomes (Público, 14/11/09), “interiores assépticos que parecem renders ou a pele de super-models passada a photoshop, numa arquitectura de cetim onde, para se viver, é preciso encher tudo de tapetes e de design”, poderá ser o termo da espiral de dissolução de que nos falava Agustina.

7.
Finalmente, para estabelecer uma espécie de contraditório, deixamo-nos interpelar pelo recente ensaio de José Gil5 que citaremos livremente.
     Afinal: “Oque significa, para nós, portugueses ter problemas de identidade? Antes de mais fazer da identidade um problema, o problema nuclear da nossa existência e da nossa cultura no sentido em que se apresenta como a última protecção narcísica e derradeiro obstáculo à transformação do indivíduo português.”
     Será que esta nos fecha em nós mesmos, impedindo-nos de criar um “fora”, ar e vento livres, respiração para viver? “Fizemos da identidade o território da subjectividade, territorializámo-nos na identidade.” E, com ela, hoje, esforçamo-nos por resistir ao “fora” que aí vem, do exterior e do interior, e que ameaça destruir as nossas velhas subjectividades mal reconquistadas por uma revolução incompleta, a que se retirou toda a dimensão trágica. Não tendo havido, no 25 de Abril, transformação do homem, a restauração da subjectividade tornou-se a única referência estável e segura, enquanto desapareciam uma a uma as determinações utópicas do futuro.
     O maior obstáculo, a raiz da paralisia do desassossego que nos impede de avançar, é esse território mental das subjectividades identitárias que nos habita como uma obsessão inconsciente de egos portugueses num país que se chama cada vez menos Portugal. A única maneira de remover o obstáculo da identidade é deixarmos de ser primeiro portugueses para poder existir primeiro como homens. Deixar de procurar a identidade para que sejamos nós, diferentes, em devir de desassossego, com a nossa força própria.|

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O título deste ensaio refere-se à anedota que se conta do rei D. Luís quando perguntou do seu iate, a uns pescadores com quem se cruzou, se eram portugueses, e eles responderam: “Nós outros? Não meu Senhor! Nós somos da Póvoa do Varzim”. [José Mattoso, A Identidade Nacional, Fundação Mário Soares, Lisbon: Gradiva Publicações, 1988].

1 Este texto, não sendo totalmente original, sintetiza e reproduz parcialmente alguns outros, publicados ou não, que ao longo de cerca de trinta anos vimos produzindo sobre arquitectura portuguesa: o caminho escolhido para colaborar no processo colectivo de identificação do nosso país.

2 Jorge Correia. Implantação da cidade portuguesa no norte de África: da tomada de Ceuta a meados do século xvi. Porto : FAUP Publicações, 2008.

3 Carlos Machado. Anonimato e banalidade: arquitectura popular e arquitectura erudita, na segunda metade do século xx em Portugal. Porto : FAUP, 2006. Texto policopiado.

4 Patrícia Miguel. O corporema da Casa Portuguesa ou repensar “O problema da Casa Portuguesa” de Fernando Távora. Coimbra : DARQ/FCTUC, 2005. Monografia produzida no âmbito do Curso de Estudos Avançados do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

5
José Gil. Em busca da identidade: o desnorte. Lisboa : Relógio d’Água, 2009.


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